O custo social da pandemia
Após décadas de volatilidade, crise e altos níveis de pobreza e desigualdade, os primeiros dez anos deste século marcaram um ponto de virada para a América Latina. O crescimento chinês e o aumento da demanda por matérias-primas, a implantação de políticas de combate à pobreza e as melhorias educacionais ampliaram a capacidade de geração de renda, principalmente dos mais pobres. Entre 2000 e 2018, o número e latino-americanos que viviam com menos de USD 4 por dia caiu para mais da metade (passando de 33% para menos de 15%) e as classes médias cresceram para níveis históricos.
Porém, a crise da COVID-19 ameaça fazer retroceder esses avanços. Por um lado, o crescimento econômico desacelerou há vários anos, diminuindo o ritmo dessas melhorias sociais. Por outro, o grupo de pessoas vulneráveis – aquelas que têm renda suficiente para não serem pobres, mas têm poucas ferramentas para enfrentar choques externos negativos – permaneceu relativamente constante, em 33%, nas últimas duas décadas.
Atualmente, mais de 210 milhões de pessoas vulneráveis na América Latina correm o risco de cair na pobreza. Não dispõem de economias para fazer frente à perda repentina de renda, têm níveis de escolaridade relativamente baixos e vivem em cidades com alta densidade populacional, muitas vezes, superlotadas e com pouco acesso a serviços públicos de qualidade, o que os expõe ao contágio do vírus. Por sua vez, quase 50% dos trabalhadores latino-americanos são informais e têm acesso limitado aos sistemas de proteção social. Na verdade, mais de um terço da população da região não faz parte dos programas públicos de proteção social.
Como em outros países, os governos latino-americanos terão de compensar os grupos vulneráveis pela perda de emprego e renda gerada por medidas de contenção. No entanto, além do reduzido espaço fiscal em muitos países, dois aspectos estruturais ameaçam a eficácia dessas políticas.
Por um lado, com algumas exceções, as capacidades dos estados são baixas. Faltam tecnologia, capital humano e sistemas integrados de informática, tanto para atingir rapidamente os 240 milhões de excluídos da rede de proteção social, quanto para melhorar a vigilância epidemiológica e a capacidade de testagem. Essas fragilidades institucionais também estão presentes nos sistemas de contratação pública, em que emergências exigem ação rápida, mas a ausência de controles ex post muitas vezes aumenta as oportunidades de corrupção.
Por outro lado, as normas culturais, particularmente a confiança nas instituições do Estado, são importantes agora e mais para frente, uma vez que o sucesso das medidas requer a colaboração voluntária das pessoas. Por enquanto, os dados de mobilidade emergentes de sistemas de transporte e aplicativos de telefone celular em cidades latino-americanas sugerem que as pessoas estão obedecendo a medidas de confinamento e distanciamento social. No entanto, as medidas fiscais precisam ser reforçadas para amortecer o impacto negativo sobre os pobres e vulneráveis. Os níveis de colaboração de hoje podem resultar, rapidamente, em altos custos.
Esses aspectos estruturais não podem ser modificados de um dia para o outro, mas os governos podem agir para mitigar seus efeitos mais nocivos. Por exemplo, como tem sido feito em vários países, a cobertura e o valor dos programas de assistência social existentes podem ser ampliados, como programas de transferência de renda (condicionadas e não condicionadas), pensões sociais e programas de apoio alimentar. Além disso, para identificar partes descobertas da população e auxiliá-las nas transferências monetárias, podem ser combinadas informações administrativas de diferentes localidades, como Argentina e Peru, por exemplo. Também será necessário avançar no governo digital e usar dados administrativos para aprimorar o desenho de políticas públicas. É possível alcançar soluções concretas em áreas prioritárias para a crise de saúde. E, finalmente, os países latino-americanos podem introduzir mecanismos de transparência e controle ex post, bem como buscar a colaboração de organismos internacionais para garantir que os recursos sejam usados corretamente.
A implementação eficiente dessas medidas tornou-se um dos desafios mais importantes para os Estados latino-americanos nas últimas décadas. É fato que a COVID-19 gerará forte impacto socioeconômico, mas devemos preservar os avanços sociais colhidos em tempos de prosperidade econômica para evitar um retrocesso histórico sem precedentes.