Tecnologia e integridade para salvar vidas
Em 1970, o Chile sediaria o primeiro experimento documentado na América Latina a aplicar técnicas computacionais centralizadas na tomada de decisão governamental, com base na captura descentralizada de dados. O CYBERSYN, ou Projeto Synco, foi uma iniciativa do então presidente Salvador Allende, desenvolvida pelo consultor britânico Stafford Beer.
O Cybersyn previa um computador central conectado a máquinas de telex nas fábricas, para que os dados sobre o processo de produção pudessem ser inseridos a partir daí, os quais seriam analisados de forma centralizada.. A consolidação das informações se dava em um espaço hexagonal, com dez metros de diâmetro, com capacidade para sete cadeiras giratórias e biombos nas paredes. Mesas e papel eram proibidos aos analistas.
O projeto prometia coletar dados em tempo real, desenhar programas estatísticos, construir simulações computacionais da economia chilena e se comunicar com as fábricas na localização de problemas que afetavam seu desempenho, aplicando um sistema de alerta precoce.
O golpe de Estado de Augusto Pinochet, em 1973, pôs fim ao Cybersyn. Embora a ferramenta tenha sido projetada para o planejamento centralizado da produção em substituição às instituições de mercado (algo que, claramente, não funcionou no Chile, naquela época, ou em qualquer outro país, posteriormente), sua tecnologia abriu caminho para o que hoje conhecemos como inteligência de dados.
Passados 50 anos, a ideia do Cybersyn não poderia ser mais relevante para os governos que hoje enfrentam a pandemia da COVID-19: precisam ter um mecanismo que, em tempo real, capte informações de hospitais, centros de saúde e assentamentos humanos, para identificar necessidades de abastecimento e implantar a atenção ante a emergência sanitária. Ao contrário da ordem que prevalecia na época de Stafford Beer e Allende, hoje, tanto os dados quanto a tecnologia para processá-los foram desenvolvidos e democratizados a ponto de haver dezenas de iniciativas de monitoramento da COVID-19 em todo o mundo, segundo a Aliança para o Governo Aberto. Essas iniciativas permitem que cidadãos e governos coordenem ações para reduzir a velocidade de expansão e a letalidade da pandemia, sob diferentes modelos colaborativos, baseados na consulta e na consolidação de dados abertos.
Porém, a letalidade da COVID-19 pode ser ampliada por variáveis que vão além dos hábitos de higiene das pessoas, da eficácia do isolamento social, das atribuições biológicas do coronavírus ou da coordenação de ações coletivas com base em dados; a materialização dos riscos de corrupção nos esquemas de atenção da emergência sanitária pode prejudicar seriamente os esforços que governos e cidadãos estão fazendo para conter a pandemia. A corrupção implicaria não apenas custos excedentes ou desvios de recursos destinados ao atendimento da emergência, masnegar a milhões de pessoas bens e serviços que representam, literalmente, o limite entre a vida e a morte. As tecnologias baseadas em dados e poder computacional que o Chile pretendeu implementar meio século atrás poderiam salvar a vida de milhões de pessoas em todo o mundo, especialmente na América Latina, onde a corrupção é um problema institucional evidente (CAF, 2019).
O risco de corrupção nos esquemas de compras e contratações públicas para fazer face à emergência assume especial relevância, uma vez que o sucesso da contenção da COVID-19 depende da cadeia de abastecimento de bens de necessidade urgente pelo setor da saúde. Neste sentido, o CAF identificou soluções que usam tecnologias baseadas em dados para dar mais publicidade e transparência aos processos de compras públicas de emergência: desde mecanismos de alocação e monitoramento de despesas em tempo real, com base em resultados, até algoritmos que enviam automaticamente aos provedores cadastrados os editais para propor ofertas emergenciais em função da pandemia.
Soluções digitais para compras e suprimentos não são as únicas ferramentas disponíveis para cidadãos e governos para promover integridade no processo de lidar com a emergência atual. A transparência dos dados de compras e as tecnologias de informática para usá-los também podem servir para detectar riscos de corrupção em tempo real. Recentemente, na Colômbia, o Controlador-Geral da República advertiu sobre os exagerados sobrepreços que levantam suspeitas de corrupção em mais de 5 mil contratos assinados recentemente por entes estatais, por ocasião da COVID-19. A Controladoria-Geral da República pode detectar anomalias em tais quantidades e em pouco tempo, graças à plataforma OCEANO, que executa modelos automatizados de análise de dados produzidos peloSistema Eletrônico de Contratação Pública (SECOP). Mecanismos deste tipo, que se baseiam na centralização de técnicas de análise de dados computacionais para determinar os riscos de corrupção, estão cada vez mais disponíveis para governos e cidadãos. O CAF fez um inventário de diversas iniciativas que utilizam a análise de dados e o aprendizado de máquina para alertar autoridades sobre os riscos de corrupção, mudando, assim, o esquema de combate ao fenômeno, pois vai além de um papel reativo, baseado em denúncias, para uma atuação pró-ativa, baseada na prevenção e na detecção precoce de possíveis crimes.
A COVID-19 está nos mostrando que a digitalização não é um luxo, mas uma ferramenta indispensável para manter os estados e mercados funcionando, como as próprias pessoas. As tecnologias digitais aplicadas às políticas de integridade podem salvar a vida de todos.