Quando ensaiava os seus primeiros passos décadas atrás, a globalização da produção buscava no custo baixo da mão de obra o fator determinante para a localização de investimentos industriais. Não tardou para que a Ásia se tornasse o destino da manufatura global. Tempos depois entrariam em cena o encarecimento da mão de obra e a busca por redução da dependência de suprimentos da China. Estes, junto a temas geopolíticos, levariam a um crescente revisionismo sobre a localização industrial.
A eles se somariam três novos fatores. O primeiro, e talvez o mais importante, é a agenda ambiental, que mira reduzir a pegada de carbono dos produtos. Não seria exagero pensar que já estaríamos testemunhando a transição da globalização da produção determinada pelo custo da mão de obra para a globalização da produção determinada pelo impacto ambiental. Esse tema afeta especialmente a China. O segundo fator está associado à guerra da Ucrânia, que gerou grandes temores de segurança, elevou significativamente os preços da energia e a sua volatilidade, alimentou a inflação de custos e aumentou os riscos de insegurança energética. Não se espera que a volatilidade dos preços e o abastecimento de energia se normalizem tão cedo, o que terá repercussões econômicas significativas em nível global, mas, sobretudo, na Europa, que está altamente exposta à agenda geopolítica e é dependente da importação de energia fóssil da Rússia. Para suprir as suas necessidades, a Europa está reativando plantas de energia suja e comprometendo os seus compromissos de carbono-neutralidade. O terceiro fator é o crescente aumento do consumo de energia na produção industrial em razão da tecnologia. Esses fatores já estão afetando taxas de retorno e até a viabilidade econômica de plantas industriais e já estão levando empresas multinacionais a reconsiderar estratégias globais de localização de investimentos.
Uma reação imediata a tudo isto é a política do nearshoring, que defende a transferência de plantas industriais da China para países amigos, com mão de obra barata e próximos a centros consumidores do ocidente. Mas é o “powershoring” que parece melhor atender às necessidades e interesses presentes e, sobretudo, futuros das economias ocidentais. O powershoring refere-se à descentralização da produção para países próximos a centros de consumo e que oferecem energia limpa, segura, barata e abundante, além de outras virtudes para a atração de investimentos industriais.
A América Latina e o Caribe (ALC) reúne muitas das condições da economia do powershoring. Afinal, a região é geograficamente próxima da América do Norte e da Europa e vários países já têm matrizes energéticas limpas ou majoritariamente limpas, enquanto outros seguem a passos largos naquela mesma toada. De fato, a região em geral definiu a sustentabilidade como fonte prioritária de crescimento, tendo como ponto de partida o seu enorme potencial em energia hidráulica, solar e eólica, além do também enorme potencial de produção de energia a partir da biomassa, biogás e biocombustíveis. Muitos países já estão desenvolvendo políticas para incentivar a produção de hidrogênio verde, que poderá beneficiar-se, ainda, das generosas reservas de gás natural da região para combinar gases, aumentar a eficiência e reduzir custos. Estimativas indicam que o custo do quilo do hidrogênio será bastante competitivo na ALC, elemento decisivo para transformar a região numa plataforma de produção industrial em geral, mas de produtos intensivos em energia em particular, incluindo o aço, ferro gusa, alumínio, vidro, cimento e celulose, para citar apenas alguns setores. Além de energia verde, competitiva e segura, a região também oferece grande variedade de commodities minerais e agrícolas de uso industrial. E, no topo de tudo isto, está o afastamento da região de temas geopolíticos complexos.
Não há como regiões desenvolvidas reduzirem de forma significativa as suas emissões de CO2 sem frearem a taxa de crescimento das suas economias, o que poderia levar a uma transição energética ainda mais lenta e politicamente mais custosa. A necessidade de priorizar o uso da energia, os compromissos com o Acordo de Paris, a exposição da produção industrial a temas geopolíticos e a elevação de custos parecem deixar inequívoca a atratividade da ALC para a Europa como parceira para a segurança energética e para acelerar a descarbonização, garantir a segurança da oferta industrial e reduzir a pressão de custos da energia. A eventual entrada em vigor do Mecanismo de Ajuste de Carbono na Fronteira (CBAM, em inglês) será fator adicional de atratividade de investimentos industriais europeus na ALC.
Mas os benefícios do powershoring são bidirecionais. Investimentos industriais teriam repercussões positivas importantes em zonas urbanas da ALC, que é onde se concentra a grande maioria da população, a informalidade e a pobreza da região. Ademais, poderia beneficiar pequenas e médias empresas, ter impactos substantivos na produtividade e na competitividade, gerar impostos, exportação e divisas e ajudar a reduzir a exposição da região a ciclos de commodities que tanto frustram indicadores econômicos, sociais e ambientais. Poderia ainda contribuir para alavancar a integração regional.
Para implementar um projeto como este, será preciso um road-map que encoraje o investimento estrangeiro direto no powershoring. Ali devem estar incluídas políticas e regulações consistentes, coerentes e sólidas de promoção, financiamento e gestão da energia limpa, segura e barata, o desenvolvimento de projetos virtuosos, investimentos em infraestruturas físicas e digitais para atender às zonas industriais e à logística de exportação, promoção de investimentos em serviços corporativos e profissionais, capacitação dos trabalhadores, acordos de facilitação de investimentos, redução da burocracia, segurança jurídica e muita institucionalidade. Ali também deveriam estar presentes o avanço do acordo Mercosul-EU e o apoio de bancos de desenvolvimento nacionais e multilaterais para o financiamento e redução de riscos e custos dos projetos privados do powershoring.
A ALC e a UE já têm uma longa história de parcerias e de compartilhamento de visões que justificam ainda mais o estreitamento da relação transatlântica, a qual poderia avançar sobre experiências já bem-sucedidas, como os elevados estoques de investimento direto que a Europa já tem na região.
Por fim, a elevada liquidez dos mercados em nível global e a busca por novos negócios e destinos para o investimento são elementos adicionais que nos levam a apostar que o powershoring será a bola da vez nos anos vindouros.
Jorge Arbache
Vicepresidente de Sector Privado, CAF -banco de desarrollo de América Latina y el Caribe-
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