A década de 1980 testemunhou o início de mudanças que alterariam para sempre os destinos da economia global. A China de então entrava numa era de profundas transformações políticas e econômicas e buscava atrair investimentos estrangeiros aproveitando-se da extraordinária quantidade de mão de obra disponível e extremamente barata. Foi também naquela altura que começavam a tomar impulso mudanças tecnológicas que acelerariam o comércio e o investimento, ali incluídos a digitalização e a internet, avanços logísticos, como a conteinerização do comércio, integração dos mercados, adoção de padrões e certificações, dentre tantas outras.

Empresas americanas logo perceberiam a oportunidade de ganhos de eficiência e promoveriam o offshoring, ou estratégia de transferência de plantas industriais para a China, processo que se ampliaria e se sofisticaria dando fulcro à formação de cadeias globais de valor. Esta coluna é uma brevíssima história do tempo, o tempo da globalização, tal como ficaria conhecido aquele conjunto de mudanças.

De fato, entre 1990 e 2021, as exportações globais se aceleraram e cresceram 6,5 vezes. Estados Unidos, Alemanha e Japão, então os três maiores no setor, viram as suas vendas externas aumentarem 4,5, 5,1 e 2,8 vezes, respectivamente. Mas exportações da China cresceram nada menos que 80 vezes, o país se tornaria o maior vendedor e viria a ser conhecido como a “fábrica do mundo”.

Mas o tempo passou, muita coisa aconteceu e, desde meados da década passada, a concentração da produção na China começou a ser questionada e mostrar excessiva exposição a fatores externos como o populismo, a geopolítica e a pandemia, que levariam ao rompimento de contratos e a problemas de abastecimento de insumos e produtos. Para reduzir a dependência da China, governos ocidentais passaram a promover estratégias como o reshoring e o nearshoring, que visam trazer de volta para casa ou para perto de casa plantas industriais estacionadas naquele país asiático.

Mas muitos analistas e estrategistas corporativos apontam que essa nova estratégia repete o erro anterior da concentração. Além disto, apontam que os tempos atuais requerem uma estratégia adaptada às novas circunstâncias e condições, ali incluídos o aumento do custo da energia, o aumento da intensidade e frequência dos eventos naturais extremos, o crescente endurecimento do compliance ambiental e as crescentes preocupações com temas geopolíticos, como a guerra na Europa e as tensões entre Estados Unidos e China.

Como consequência, tem emergido, e com cada vez mais força, a visão de que é necessário promover a diversificação geográfica, e não a concentração das plantas industriais e das cadeias de produção, de tal forma a garantir a resiliência e proteger, desta maneira, os interesses das empresas e dos consumidores. Já a eficiência está ganhando novos contornos. Se, antes, os custos laborais eram o fator mais crítico para a geografia das plantas, agora, é a energia que está ganhando protagonismo na agenda de competitividade das empresas. Afinal, o compliance ambiental, os custos energéticos e a mudança do perfil do consumo estão entrando em cena influenciando os investimentos e a localização da produção. A energia verde, segura, barata e abundante está cada vez mais no centro das decisões da localização da produção.

Alguns analistas pleiteiam que a globalização tal como a conhecemos teria chegado ao fim e que o comércio e o fluxo de capitais e investimentos deverão até mesmo diminuir. A hipótese parece exagerada, pois não considera os interesses das empresas e dos mercados. O que, provavelmente, veremos é uma nova etapa da globalização, que combinará elementos de resiliência com a moderna agenda de eficiência, embora com algum contorno político-regional e, talvez, com escopo menos amplo. O powershoring é a expressão mais visível dessa “neoglobalização”, posto que é uma estratégia de localização de plantas industriais ancorada na resiliência e na eficiência associada à energia verde.

Em razão da sua singular condição para produzir energia limpa e renovável, de já ter uma matriz energética relativamente limpa para padrões mundiais, de estar desenvolvendo ambiciosas carteiras de projetos na área, de já ter ambiciosos planos e projetos de produção de hidrogênio verde (H2V), de liderar a agenda de biocombustíveis e de estar desenvolvendo novos modelos de negócios e novas tecnologias para o setor energético, a região da América Latina e o Caribe (ALC) desponta como um dos grandes potenciais participantes da neoglobalização. Além disto, a ALC tem localização geográfica privilegiada, está distante de temas geopolíticos e tem governantes cada vez mais conscientes da relevância estratégica da agenda ambiental para o desenvolvimento econômico e social.

O neoglobalização poderia ser a ponta de lança da industrialização da região, que poderia ter quatro eixos sinergéticos e complementares: a atração de plantas industriais em razão do powershoring; a atração de novos investimentos em energias renováveis e H2V; sediar a formação de um hub global de produção de equipamentos, serviços e manutenção de energias renováveis e H2V; e a atração de investimentos que miram a agenda de biocombustíveis e novas tecnologias. Portanto, trata-se de um processo de industrialização em que a energia limpa, os investimentos verdes, as vantagens comparativas, o compliance ambiental, o capital estrangeiro, a exportação, a tecnologia e a inovação exerceriam papel determinante, ao tempo em que combina o respeito e a proteção ao meio ambiente com a agenda do desenvolvimento.

Investimentos no âmbito da neoglobalização poderão “arrastar” e dar tração a negócios de muitos setores industriais e de serviços, financeiros e não financeiros, e poderão ser decisivos para a geração de emprego e renda e para o desenvolvimento regional. Para sacar todos esses potenciais benefícios, os governos da região precisarão entender a oportunidade que toca à porta, preparar estratégias adequadas, definir prioridades, trabalhar de maneira muito próxima ao setor privado e colocar em curso uma agenda executiva que viabilize a incorporação dos benefícios o mais rapidamente possível desta que poderá ser a maior e mais potente fonte de transformação das economias da região.

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Autores:
Jorge Arbache
Jorge Arbache

Vicepresidente de Sector Privado, CAF -banco de desarrollo de América Latina y el Caribe-