Um dilema para Maria e mais de 100 milhões de latino-americanos que vivem em assentamentos informais
Para Maria, a água chegou ao pescoço. Literalmente. De repente, ainda na cama, viu como o rio cobria lentamente o chão da sua casa, logo seus móveis para chegar depois à altura das tábuas coladas na parede de madeira. Desta vez, o rio não avisou, como tinha feito há 10 anos. Ninguém imaginava que aquela enchente se repetiria tempos depois.
Tanto ela como as 36 famílias que vivem à margem do rio se acostumaram ao bairro. Sua localização é bem conveniente. Fica a 10 minutos a pé do centro comercial da cidade e isso permite que Maria chegue rapidamente ao seu posto de venda na esquina que já é dela, deixando sua filha de três anos no caminho aos cuidados de uns amigos.
A água é novamente impiedosa e destrói o pouco que tem. Como seus vizinhos, Maria deve sair rapidamente e encontrar madeiras e papelões para improvisar uma casinha em uma das praças da cidade na qual viverá por um ano e três meses, esperando contar com a ajuda do governo ou de alguém mais. Uma ajuda que finalmente nunca chegará. Assim, o rio volta a ser opção. Passaram-se 10 anos para que a enchente voltasse, se o mesmo se repetir, sobra tempo para pensar no que fazer.
Existem alternativas para Maria. A primeira delas é se mudar para um novo bairro que construíram a sete quilômetros de onde vive agora. Os funcionários do governo lhe informaram que as casinhas são muito boas, que têm piso, paredes e teto de verdade, e que não há que pagar praticamente nada para adquiri-la. Só é preciso deixar a sua casa e assinar um papel para não voltar à margem do rio. Ela hesita. Pergunta se há uma creche e uma escola nas proximidades para sua filha e, apesar de a resposta ser negativa, tentam incentiva-la dizendo que a pouca distância, cerca de 20 quarteirões, há uma muito boa na qual podem até mesmo dar comida à menina. O problema é que o transporte público ainda não passa pelo bairro. Maria não tem carro, moto nem bicicleta, embora com esforço pudesse compra-la e, com ela, deixar a menina na escola e continuar até seu trabalho. No entanto, as ruas não são seguras e a avenida que conecta o bairro ao centro não tem espaço para bicicletas. Com quem deixar a menina? Como chegar ao trabalho? Uma vizinha lhe diz que pense bem, que no novo bairro vai ter que pagar por tudo, pela água, eletricidade, gás, até para tirar o lixo.
Uma segunda opção é ficar. Escutou que vão preencher o lugar para que a água não suba mais, que há pessoas no governo que pensam que essa é a solução. No entanto, a dúvida persiste porque houve outros funcionários que visitaram o local e mencionaram a importância do pântano, destacando a que não se deve fazer nada e que no futuro ninguém poderá viver neste terreno.
O que fazer? Ela gostaria de ficar ali. Seu trabalho está próximo. Tem o hospital e a futura escola para sua filha. Tem seus amigos e os vizinhos de toda a vida. Tem uma história. Mas se o da humidade é certo e, por duvidar, acaba ficando sem nada? Onde vai viver?
Maria não sabe que ela e seus vizinhos não estão sozinhos para enfrentar esses dilemas. Milhões de latino-americanos, estima-se que mais de 100 milhões, sofrem este e outros múltiplos problemas ao viver em assentamentos irregulares. A falta de respostas eficazes para essas demandas costuma ser parte de uma trama complexa de deficiências institucionais, valores e cosmovisões conflitantes, ausência de coordenação entre os responsáveis pela política, falta de planejamento e de criatividade para pensar em uma solução na qual todos ganhem.
Estas questões impactam em múltiplas dimensões e exigem responder dilemas tais como: quais são os direitos de Maria e quais são os da filha dela? Como esses direitos correspondem com o resto dos cidadãos? São diferentes? Se a igualdade é um valor que faz parte da gestão urbana, qual é o parâmetro para medi-la com Maria e seus vizinhos? Quem são os responsáveis para tratar de obter uma solução para este problema? Quais seriam as medidas mais eficazes? Como alcança-las?
Para delinear algumas respostas é necessário primeiro compreender a complexidade das dimensões que o problema envolve. Algumas estão ligadas à política regional, visão urbana, governança, emprego, gênero, apego ao lugar, meio ambiente, instrumentos de gestão (regulamentos, incentivos, recursos financeiros) são apenas uma amostra e apenas se deve menciona-los para se perceber a complexidade da abordagem.
Por onde começar? O que se deveria aconselhar ao chefe de governo? O que se deveria aconselhar a Maria?
A partir do Programa Cidades com Futuro e a política Pro-Inclusão, no CAF -Banco de Desenvolvimento da América Latina- procuramos contribuir com as respostas para estes dilemas e melhorar a implantação de políticas. A próxima conferência Habitat III é uma excelente oportunidade para intercambiar experiências e aprofundar o conhecimento desta questão e as possíveis soluções para os mais de 100 milhões de pessoas que esperam uma solução como Maria.