Será que a transformação digital pode recuperar a confiança cidadã?
Este artigo também foi publicado no jornal El País
“Não é por 30 pesos, é por 30 anos”. O que motivou os protestos violentos nas ruas de Santiago do Chile foi o aumento de 30 pesos na tarifa do metrô, mas o contexto mostra uma frustração cidadã que também atinge os cidadãos de outros países da América Latina.
Os manifestantes chilenos dizem que se sentem esquecidos por um modelo econômico injusto, onde o custo de vida continua a subir, enquanto suas aspirações são frustradas em um cenário de insatisfação política e desigualdade constante. Em outras palavras, as expectativas das pessoas cresceram mais depressa que sua renda.
Em termos gerais, a agitação social na região reflete as aspirações frustradas de uma classe média crescente - embora ainda vulnerável - que espera melhores serviços públicos e maior integridade de seus políticos. Apesar das melhorias sociais e da redução da pobreza, o modelo de desenvolvimento está paralisado e deve mudar de rumo para remediar a fratura institucional.
E um fator importante que afeta a qualidade de vida é o peso da burocracia e o emaranhado de seus trâmites, o que cria atrito entre cidadãos e Estados e desgasta a competitividade das economias. De acordo com o relatório 2020 sobre o clima de negócios do Banco Mundial, a região se destaca pela quantidade e complexidade de seus trâmites burocráticos, e nenhum país consegue estar entre os 50 mais ágeis dos 190 avaliados. O paradoxo é que a América Latina é a região com mais normas e, ao mesmo tempo, onde elas são menos respeitadas.
É também a região que faz mais esforços para se desburocratizar. Em 2018, 21 dos 32 países latino-americanos realizaram 35 reformas de simplificação para, por exemplo, facilitar o registro de um imóvel ou a criação de uma empresa. A Argentina promoveu um programa de simplificação produtiva destinado a destravar os trâmites que afetam as empresas. As pequenas e médias empresas, que são o tecido empresarial das economias latinas, são particularmente afetadas por esse emaranhado burocrático.
Essa situação enfraquece o pacto fiscal entre os cidadãos e seus Estados, porque as pessoas não veem qual é o valor dos impostos que pagam, dada a baixa qualidade dos serviços públicos que recebem em troca. Os protestos surgem, em parte, do sentimento de injustiça fiscal e da ausência de um pacto fiscal que redistribua a riqueza e dê proteção social. O que os latino-americanos querem não é menos Estado, mas um melhor Estado.
De acordo com a OCDE, em 2015, 52% dos latino-americanos consideravam sonegar impostos algo desculpável. Isso cria um círculo vicioso: a baixa confiança leva a menos arrecadação, e isso enfraquece as instituições e reduz sua capacidade de fornecer serviços. A região está presa no que a OCDE descreve como uma “armadilha institucional”.
O emaranhado burocrático dos Estados da região continua sendo seu principal calcanhar de Aquiles. A complexidade dos trâmites e a discricionariedade dos funcionários responsáveis criam oportunidades de subornar ou "molhar a mão". De acordo com o relatório anual do Banco de Desenvolvimento da América Latina de 2019, um em cada quatro latino-americanos declara ter pago uma propina para receber um serviço ou acelerar um trâmite no último ano.
Mais do que reformas ad hoc, a região precisa de medidas de impacto para eliminar o peso sufocante da carga regulatória, tanto da existente quanto do fluxo incessante de regulamentações. Nesse sentido, a transformação digital das administrações oferece uma oportunidade única para atacar a regulamentação excessiva. Isso requer uma mudança cultural nas nossas administrações, porque a tradição legalista faz pensar que todo problema é resolvido através de uma norma.
Em face desta situação, os governos da região procuram se desburocratizar. No Brasil, a desburocratização é um mandato central do Ministério da Economia. No Equador, foi lançado um programa ambicioso de simplificação, com uma lei em 2018 para otimizar os trâmites administrativos. Na Argentina foram feitos avanços importantes na transformação digital do Estado, e no Chile foi apresentado um plano para conseguir um Estado “sem papelada e sem filas”.
Um dos principais instrumentos da desburocratização é digitalizar os serviços e agilizar os trâmites. O Brasil acaba de lançar um portal único de serviços digitais e a Colômbia está a ponto de fazer o mesmo, seguindo os passos do México e do Peru e o modelo da Inglaterra. No Uruguai, 68% dos trâmites burocráticos em nível nacional já podem ser iniciados e concluídos on-line. Em novembro, o governo colombiano lançou um decreto “antiburocrático” para melhorar o atendimento aos cidadãos nos 2900 procedimentos administrativos nacionais. Por exemplo, as autoridades não poderão solicitar duas vezes documentos que já estejam em seus arquivos.
Mas a digitalização não é suficiente; é preciso simplificar. É por isso que outra bateria de reformas se concentra em racionalizar e repensar a burocracia. Há muitas estratégias de simplificação, desde as mais radicais, como a "guilhotina" regulatória, até outras mais delimitadas de depuração normativa e revisões ex post. A Colômbia, por exemplo, adotou em 2014 um roteiro para racionalizar a produção regulatória, mas continua precisando de iniciativas de “limpeza regulatória” como Estado Simples, Colômbia Ágil que, no primeiro ano do governo de Iván Duque, interveio em mais de mil normas e trâmites.
É por isso que é necessário racionalizar o fluxo da produção normativa do Estado, reformas que exigem mais pulso político. O México terminou duas décadas de reformas em 2018 com a adoção da lei geral de melhoria regulatória e tem um órgão federal encarregado de disciplinar a política regulatória.
A vontade política do topo do governo é essencial para definir o norte, marcar o tom e baixar a linha. Sem isso, a região continuará em um equilíbrio instável entre o impulso regulatório e o desejo de racionalização. Mas, além de acelerar os trâmites burocráticos, é imprescindível melhorar a qualidade dos serviços públicos. É o que esperam os cidadãos nas ruas.