A América Latina está preparada para modernizar seus serviços públicos através da tecnologia?
É cada vez mais comum ouvir frases como: "modernização do setor público por meio da tecnologia", "inovações e digitalização do Estado", "governo eletrônico" e muitas outras expressões que buscam destacar o papel da tecnologia dentro do Estado. Em suma, é evidente que, nos últimos dez anos, os esforços para modernizar os serviços públicos através de diversas ferramentas tecnológicas cresceram substancialmente.
O chamado governo aberto, as reformas tecnológicas para automatizar e potencializar diversos processos, como trâmites dos cidadãos e licitações de projetos, as interfaces desenhadas para envolver a cidadania na tomada de decisões públicas e no monitoramento das gestões e da justiça eletrônica (e-justice) etc., são ações que tomaram conta da cena nos últimos anos. Mas quão importante foi esse processo na América Latina? Como foi sua implementação? Os serviços públicos realmente melhoraram com essas inovações?
Numerosos estudos destacam a importância desse tipo de inovações dentro da gestão pública, não apenas pelo seu potencial para a otimização de processos, mas também pelos ganhos que muitas vezes trazem consigo em transparência, participação e monitoramento cidadão. No entanto, há também pesquisas um pouco mais cautas sobre essas mudanças, que destacam as enormes dificuldades que sua implementação costuma ter, bem como as mudanças institucionais necessárias para que possam operar e funcionar corretamente. Por exemplo, algumas soluções tecnológicas para o setor público muitas vezes são importadas do e-commerce e/ou da esfera privada, onde os cidadãos são percebidos como clientes e não como indivíduos com direitos e obrigações, aspectos vitais na relação do cidadão com o Estado.
Além dessas dificuldades operacionais e institucionais, parece que o setor público latino-americano enfrenta desafios significativos para apropriar-se e incorporar na gestão governamental uma variedade significativa de inovações tecnológicas. Duas avaliações de impacto realizadas pelo CAF -banco de desenvolvimento da América Latina- lançam luz a esse respeito e ressaltam a importância do desenvolvimento dessa agenda.
A primeira avaliação, realizada na Colômbia, teve como objetivo avaliar o Sistema Único de Informações sobre Trâmites (SUIT) como uma plataforma tecnológica para aprimorar a política de otimização de trâmites em todo o território nacional. O funcionamento determina que as entidades devem primeiro "cadastrar" os trâmites que oferecem à cidadania, o que leva a uma segunda fase em que são realizadas ações para otimizar cada trâmite, como, por exemplo, reduzir os requisitos solicitados ao cidadão, extrair informações de bancos de dados de outras entidades, aumentar a transparência na cobrança dos trâmites , entre outros. Embora a avaliação tenha sido pensada para avaliar o SUIT como inovação tecnológica, o exercício mudou radicalmente quando foi identificado que o uso do sistema pelas entidades era extremamente baixo. Assim, em 2017, em todo o país apenas 40% dos trâmites foram registrados e 31% das entidades não haviam registrado com sucesso nem uma só tramitação no sistema. Isso fez com que o exercício voltasse seu foco para a dentificação de mecanismos eficazes para promover o registro de trâmites pelas entidades.
A segunda avaliação passou por um problema semelhante. O exercício nasceu com o objetivo de avaliar a PRESET: uma plataforma para o cadastramento, a avaliação e o monitoramento de projetos de infraestrutura de água e saneamento no Peru. A PRESET surgiu como uma inovação tecnológica para melhorar o ciclo e a licitação de projetos, que eram extremamente ineficientes e dispendiosos; sua formulação exigia diversas idas a Lima, tinha uma duração média de aproximadamente 48 meses e propiciava a contratação de "gestores" que supostamente agilizaram o processo quando, na verdade, eram uma fonte de corrupção, entre outros aspectos. Ou seja, o objetivo do exercício foi quantificar as melhorias na velocidade do processo e na qualidade dos projetos formulados através da PRESET, em comparação com os apresentados pela via tradicional. No entanto, novamente foi identificado um problema com o uso e a massificação da plataforma: 35% das entidades não apresentaram nenhum projeto através da PRESET, demoraram em média 296 dias para iniciar e terminar o cadastramento dos projetos (primeira fase do processo de formulação) e apenas 40% concluíram o registro de algum de seus projetos. Tal como na avaliação na Colômbia, esse diagnóstico sobre o uso da plataforma levou o foco do exercício para uma intervenção com elementos comportamentais transmitidos por meio de mensagens de texto e e-mails com o fim de aumentar a apresentação e o registro de projetos na PRESET.
Vale a pena perguntar, então, por que essas inovações tecnológicas não conseguiram funcionar corretamente e alcançar os objetivos para os quais foram originalmente projetadas? Que fatores poderiam estar impedindo sua massificação e uso nas instituições públicas latino-americanas?
Encontrar respostas para essas perguntas é complicado. Vale ressaltar que, antes de iniciar a avaliação do Peru, foi enviada uma enquete a todas as instituições públicas aptas para formular projetos de água e saneamento, tendo sido obtidas respostas de pouco mais de 400 entidades. Os resultados são muito interessantes, pois permitem descartar algumas hipóteses. Se a hipótese é de que os usuários não tinham conhecimento da plataforma ou a consideravam uma ferramenta pouco útil, os resultados determinam que esses não parecem ser os motivos que desencorajaram seu uso. Pelo contrário, os funcionários entrevistados enfatizaram que a falta de capacitação do pessoal e as contínuas observações dos analistas da plataforma eram as principais barreiras para a apresentação dos projetos. A segunda razão também pode ser reflexo das baixas capacidades dos entes públicos para formular projetos de qualidade. Finalmente, parece que, tanto no Peru quanto na Colômbia, foi destinada uma quantidade significativa de recursos para tornar adequada a operação de ambas as plataformas, aspecto que descarta a possibilidade de que a funcionalidade das plataformas seja uma das principais barreiras para seu uso.
Essa resistência na região às inovações tecnológicas pode existir devido a fatores relacionados ao capital humano e suas dificuldades em internalizar e absorver essas mudanças em suas tarefas. Com isso, não estamos falando apenas de problemas das capacidades dos funcionários públicos, mas também de equipes de trabalho sem a escala nem a vontade necessária para enfrentar as tarefas cotidianas aliadas aos esforços necessários para trabalhar, por exemplo, com um novo sistema e/ou processo tecnocrático.
É por isso que a implementação de ferramentas tecnológicas no Estado deve ser acompanhada de estratégias que permitam preparar e motivar funcionários públicos para sua utilização e massificação adequada, tais como treinamentos, sistemas de incentivos por meio de recompensas ou elementos comportamentais, e outras ações que levem em conta as limitações e preocupações dos servidores públicos. Com isso, desvincular este processo de modernização do Estado das falhas de capital humano continuará a ser uma barreira para sua consolidação na gestão pública, bem como um dos principais desafios a serem enfrentados pelas novas administrações.