Pandemia e cadeias globais de valor
A eclosão da pandemia na China e o consequente rompimento de cadeias de suprimentos levantou preocupações mundo afora. Emergiram inquietações com os riscos da excessiva concentração e dependência de equipamentos médicos e hospitalares e outros tantos bens e partes fabricados na China e com a excessiva interdependência produtiva, que estaria, inclusive, levando à transmissão e difusão dos choques da pandemia para a economia.
Governos ao redor do globo reagiram às dificuldades de importação de equipamentos médicos e enquadraram a pandemia como tema de segurança sanitária, nos moldes da segurança alimentar, e passaram a justificar a necessidade de produção local. Mas as reações oficiais de alguns países foram ainda mais longe e incluíram medidas que ampliaram distorções nos investimentos e no comércio e medidas para diversificar redes de suprimentos com vistas a reduzir a dependência da China. Alguns governos propuseram até mesmo medidas para levar de volta para os países de origem plantas ora em operação na China.
Aquelas inquietações têm suscitando calorosos debates sobre os destinos das cadeias globais de valor (CGV). Levantam-se indagações tais como se as reações de política levarão ao fim da globalização da produção e se, de fato, as multinacionais deixarão a China. Quaisquer que sejam as respostas, o fato é que o sentimento prevalecente é que as CGV teriam ido longe demais e mostrado os seus limites e que deveriam, agora, se transformar.
Mas os fatos mostram que as CGVs já vinham em processo de transformação desde muito antes da pandemia levando ao aumento da regionalização das cadeias de valor. Motivos para isto incluíam o crescimento da importância dos serviços no valor agregado, como P&D, patentes, distribuição e marcas; aumento dos custos trabalhistas na China; redução da importância do custo da mão-de-obra como fator de eficiência produtiva devido à popularização de robôs, inteligência artificial e outras tecnologias; crescimento da importância da customização e da regionalização das estratégias mercadológicas; crescente preocupação com a pegada de carbono na produção; lições das implicações do terremoto de 2011 no Japão nas cadeias de suprimentos; e aumento da participação dos serviços nas cestas de consumo. O movimento interno de mudança nas cadeias de valor estaria, portanto, associado à mudanças tecnológicas e nos modelos de negócios e seria orientado por variáveis e estratégias comerciais.
Neste sentido, deveríamos esperar um esvaziamento das CGV na China? Com exceção de equipamentos médicos e hospitalares, medicamentos e similares, há razões para se esperar que as respostas oficiais à pandemia não alterarão de forma significativa as CGV para além do processo de transformação já em curso. Afinal, a China é vista pelas empresas multinacionais como um sítio altamente atrativo e integrado para desenvolver, produzir e distribuir para todo o mundo – vale lembrar que o maior valor intangível das cadeias de produção são as redes de colaboração e relacionamentos e a diversidade de provedores, que abundam naquele país. Mudar geografias de plantas industriais de forma abrupta seria exercício demorado, pouco eficiente e custoso, em especial na difícil conjuntura da economia mundial.
Além disto, há que se ter em conta que a forte presença de empresas multinacionais na China se justifica para além do tema de eficiência e está associado aos mercados chinês e asiático, que estão se tornando o pivô da economia global. Por fim, embora a China já esteja desenvolvendo tecnologias avançadas, marcas e até liderando importantes CGV, o país ainda prescinde da presença e dos investimentos de empresas estrangeiras em diversas áreas, o que sugere que o governo seguirá introduzindo reformas para facilitar e atrair investimentos estrangeiros.
Dito isto, há que se ter em conta, por outro lado, que a crescente politização de temas de comércio e investimentos poderá, efetivamente, influenciar os destinos das CGV. São muitos os sinais nesta direção, que incluem a imposição de medidas tarifárias e não tarifárias protecionistas; medidas que comprometem contratos comerciais livremente pactuados; sanções e bloqueios de ativos, pagamentos e transferências; legislações que interferem nas fusões e aquisições; ameaças de rompimento de diálogo em processos de harmonização de padrões técnicos e regulatórios; tendência de fragmentação nos sistemas globais de pagamentos; e ameaças ao livre funcionamento e integridade da internet em nível global. A isto se somam a estagnação da OMC e a inoperância do sistema de solução de controvérsias; a ênfase em acordos bilaterais de comércio em detrimento de multilaterais; e a emergência de movimentos nacionalistas e anti-imigrantes.
As implicações daqueles sinais são potentes e incontroversas e, dentre elas, estão a redução da segurança jurídica, o aumento dos custos de produção e dificuldades para o trânsito de bens, serviços, ideias, recursos e pessoas, temas fundamentais para o funcionamento das CGV.
Qual dos dois conjuntos de fatores prevalecerá sobre os destinos das CGV: os comerciais ou os políticos? Pouco se pode prever no atual contexto. Porém, uma coisa é certa: para a América Latina, que participa das CGV majoritariamente pelas vias da produção e exportação de commodities e importa grande parcela dos insumos e bens manufaturados finais que necessita, a redução da eficiência dos mercados e a elevação dos preços vão na contramão dos seus interesses e terão impactos deletérios nas taxas de crescimento, produtividade, competitividade das empresas, bem-estar, pobreza e desigualdade.