Uma feira no parque
Melhores espaços públicos para recuperação urbana pós-pandemia
13 de maio, 7h da manhã. A via de acesso à Reserva Natural Costanera Sur foi marcada com linhas e círculos amarelos, pegadas pintadas no asfalto, setas indicando direções, bloqueios, bandeiras. Uma mesa e duas gavetas anunciavam a reabertura das feiras itinerantes que, desde 1990, abastecem os moradores de Buenos Aires. “A quarentena por conta da COVID-19 está mantida, anunciava a Prefeitura na imprensa, mas as feiras de bairro voltarão a acontecer”. Finalmente, um respiro. Muito além de promover o consumo de produtos locais, a feira de bairro representou a única oportunidade para os moradores se desconectarem das redes sociais e acessarem, momentaneamente, um passeio no parque.
A intenção não é depreciar o potencial oferecido pelas redes sociais e pelo teletrabalho, mas este é um discurso que pertence aos fluxos de informação, os espaços públicos funcionam com outra lógica, ligada ao tangível. Na cidade contemporânea, constituem uma rede física contínua que fornece acessibilidade e conectividade às diferentes peças urbanas. Esta continuidade depende das relações que estabelecemos entre os objetos materiais e as pessoas, vinculando-nos por meio de coisas tão simples, como círculos no chão, ou tão imensas, como infraestruturas verdes ao longo das margens do rio metropolitano.
Em qualquer escala, a qualidade de um espaço público consiste em identificar a estratégia adequada para organizar elementos específicos que, ao relacionaram-se, possam satisfazer nossas necessidades de lazer, mobilidade, participação, associação, proteção, emprego e saúde. Os espaços públicos, quando de qualidade, podem criar as condições necessárias para garantir a permanência da vida coletiva, mesmo em tempos de grande incerteza social, proporcionando à sociedade como um todo os instrumentos necessários à sua resiliência.
Como demonstram alguns estudos qualitativos, tradicionalmente, os espaços públicos de nossa região têm sido considerados espaços de transição entre edifícios e não espaços a serem habitados. A qualidade da habitabilidade tem sido reservada às residências e escritórios, desde que possam ter as dimensões espaciais, ambientais e psicológicas adequadas ao desenvolvimento das funções privadas. No entanto, a ideia de habitabilidade do espaço público, por extrapolação, deveria estar associada à preparação de condições adequadas para o funcionamento social. Quais as implicações dos conceitos de habitabilidade e qualidade do espaço público para a reativação urbana pós-COVID na América Latina?
Nossa região é a mais desigual do planeta, uma em cada três famílias vive em uma residência inadequada, sem nem as dimensões ou as condições sanitárias básicas para desenvolver uma vida digna e, menos ainda, para cumprir as regras estritas de distanciamento social que a COVID exige. Em assentamentos informais, os espaços públicos tornam-se uma extensão de moradias precárias, transferindo algumas de suas funções domésticas para o exterior, único espaço onde o distanciamento social é possível. Por outro lado, milhões de trabalhadores informais decidem suas fontes de renda a partir das condições que os espaços públicos lhes podem oferecer para o desenvolvimento de suas atividades. Neste contexto, os espaços públicos latino-americanos também se tornam espaços produtivos e complementos para a vida em casa.
Se a recuperação pós-COVID-19 pode ser orientada para a construção de cidades com maiores níveis de inclusão e produtividade, isso implica, necessariamente, melhorar a habitabilidade dos espaços públicos para uso das populações mais vulneráveis, compreendendo os aspectos econômicos, psicológicos de reorganizar funções básicas que o espaço privado lhes nega.
A partir daquela feira em frente ao parque, podemos refletir sobre dois aspectos emergentes que poderiam fortalecer as qualidades de que os bons espaços públicos precisam, talvez em escalas e tempos diferentes do planejamento urbano formal.
Em um primeiro nível, estão as ações em uma escala de proximidade, que requerem um olhar estratégico de curto prazo. Como em Buenos Aires, alguns governos locais da região estão usando a flexibilidade do urbanismo tático para experimentar possíveis soluções, por meio da colocação de objetos simples que reconfiguram temporariamente os usos do solo. Esta tipologia de intervenção tem ocorrido, normalmente, por meio de iniciativas comunitárias e empresariais consideradas, até agora, como de pouca consequência. No entanto, diante da ameaça da COVID, muitas autoridades institucionalizaram o planejamento urbano tático como um instrumento estratégico, sabendo que, por tentativa e erro, transformações qualitativas permanentes poderiam ser viabilizadas.
Em um segundo nível, está o olhar metropolitano que requer uma governança territorial efetiva para atingir transformações de longo prazo. Os problemas de habitabilidade que tornam vulneráveis as zonas mais desfavorecidas nem sempre encontram solução nas proximidades. O fornecimento de água e saneamento, a logística para distribuição de alimentos, grandes unidades de saúde e até a sustentabilidade dos corredores verdes dependem de ações que extrapolam os limites do bairro e, até mesmo, da cidade que os abriga; requerem uma coordenação política eficaz na utilização de grandes espaços públicos que facilite a instalação de infraestruturas de serviços, essenciais para mitigar os efeitos da pandemia.
Essa crise de saúde tornou visíveis os problemas de segregação e desigualdade que a cidade latino-americana enfrenta desde suas origens. O mesmo parque da Costanera Sur é, há décadas, objeto de grandes disputas relacionadas ao uso da terra em seu entorno por diferentes classes sociais, porém, toda quarta-feira, a feira em frente ao parque nos oferece uma trégua.. É nesses momentos de crise que o espaço público passa a ser um agente conciliador e de mediação, tanto pelas marcas de tinta no terreno que geram segurança e confiança, como pelos grandes acordos metropolitanos que permitem a continuidade de uma vida digna em nossos bairros.