Crédito e volta aos trilhos
Estima-se que, em condições normais, a maior parte das pequenas e médias empresas (PME) da América Latina têm recursos próprios para fazer frente a custos fixos por até no máximo trinta dias. Assim que parece razoável assumir que boa parte daquelas PME poderia entrar em quebra técnica durante a crise do Covid-19 colocando milhões de empresas em risco e paralisando cadeias de pagamentos, o que ampliaria os efeitos adversos da crise.
Foi neste contexto que muitos governos da região implementaram programas públicos emergenciais de apoio às empresas. Os programas destravaram o crédito oferecendo linhas e garantias parciais de crédito, programas de diferimento de pagamento de dívidas, obrigações financeiras e impostos e programas de apoio temporário a folhas de pagamento.
Os programas deram novas oportunidades para empresas que padeciam de problemas de liquidez, o que foi determinante para a manutenção de empregos e do tecido produtivo. Mas mudanças nas condições de mercado associadas à crise, como mudanças tecnológicas e nos padrões de consumo e renda, e incertezas quanto à duração e formato da recuperação econômica, possibilidade de segunda onda de infecções e incertezas sobre a disponibilidade da vacina têm complicado ainda mais a situação de muitas empresas. De fato, em meio a uma crise sem precedentes como esta, pode ser difícil diferenciar iliquidez de insolvência até mesmo de empresas presumidamente sólidas até antes da crise.
Parece razoável assumir que parte das empresas beneficiadas por programas públicos poderá ter problemas de solvência mais adiante, provavelmente após o fim dos períodos de graça de financiamentos emergenciais e de diferimento de pagamentos de dívidas e impostos, o que poderá se transformar numa armadilha para a própria recuperação econômica. Afinal, programas emergenciais podem postergar, mas não impedir eventuais falências de empresas.
O problema é que a sobrevida daquelas empresas não é neutra e pode comprometer a competitividade de outras empresas com as quais elas fazem negócios; ser uma barreira de entrada para novas empresas e para o crescimento de empresas que entraram no mercado; dificultar o aumento da produtividade média da economia; afetar as finanças e fundos públicos de garantias; e deteriorar a qualidade das carteiras de crédito dos bancos, comprometendo balanços e requerendo aumento de provisões, o que poderia impactar a disponibilidade de recursos e o apetite de risco para novas operações de crédito mais adiante. Estudo global do BIS sugere que 50% das empresas enfrentarão problemas de serviço de dívida no próximo ano. Não seria exagero conjecturar que esta proporção poderá ser ainda maior entre as PME da região.
Tudo isto aponta para a utilidade de se dispor de uma espécie de “chave do crédito”, que alocaria recursos para empresas de forma racional e eficiente para promover uma recuperação saudável. Mas, infelizmente, o mundo é bem mais complicado. Afinal, num contexto tão hostil como o atual, pode haver muitos falsos-positivos e falsos-negativos na identificação de debilidades e condições de sobrevivência de empresas. O tema torna-se especialmente inquietante quando se leva em conta a realidade de grande parte das PME da região, para as quais dificuldades de acesso a crédito e a mercados e problemas de capacidades, de gestão e de deficiências tecnológicas são a norma, e não algo próprio de períodos de crise, o que sugere resiliência. Assim que os tomadores de decisão estão sendo confrontados com a difícil tarefa de pavimentar o caminho da retomada econômica ao tempo em que têm que reconhecer a difícil realidade da maioria das empresas.
O que fazer neste contexto tão complexo? Por suposto, não haveria um conjunto único de recomendações, já que medidas dependem das condições específicas de cada país, incluindo estágio da crise sanitária, espaço fiscal, sistema financeiro e instituições. Porém, há pontos de interesse geral.
Será especialmente útil avançar em métodos mais sofisticados de conhecimento e identificação de problemas das PME, de forma a lhes dar tratamento adequado de crédito. Neste sentido, bases de dados inovadoras, como as utilizadas por fintechs, por exemplo, poderiam ser empregadas como instrumentos adicionais de avaliação de crédito.
As intervenções públicas poderiam mirar na sustentabilidade da recuperação das empresas. Neste sentido, poder-se-ia condicionar o apoio de programas emergenciais à participação ativa das empresas em programas de capacitação de recursos humanos, melhoria da gestão e incorporação e uso de novas tecnologias, especialmente as associadas à transformação digital, de forma a reduzir custos e aumentar a produtividade e a competitividade.
Outras recomendações incluiriam trocas de dívidas, titularização de carteiras de PME e reformas das legislações de falência, que são, em boa parte, pouco eficientes e precipitam a quebra de empresas solventes e viáveis, mas que passam por problemas de liquidez.
Por fim, uma eventual orientação limitante de acesso a crédito que possa levar à quebradeira de PME deveria vir acompanhada de programas de renda mínima e de empregos emergenciais, de forma a mitigar o aumento do desemprego e da pobreza e gerar renda para apoiar a retomada da economia.
As boas notícias são que a crise sanitária já está sob controle em vários países, economias da região já começaram a dar sinais de recuperação e as políticas emergenciais estão dando tempo aos bancos para reforçarem as suas reservas de liquidez para fazerem frente à eventuais necessidades. Muitas incertezas, mas uma coisa é certa: a gestão adequada e oportuna do crédito será o fator determinante para a economia voltar e se manter nos trilhos.