É necessária uma educação financeira com perspectiva de gênero?
Na América Latina e Caribe, 57,4% dos homens e 51,4% das mulheres (maiores de 15 anos) informam ter conta (individual ou conjunta) em banco ou outro tipo de instituição financeira. Em média, 54% da população da região está inserida no sistema financeiro formal. Segundo dados de 2017 do Global Findex do Banco Mundial, esse percentual é significativamente baixo quando comparado aos 94,7% (95,3% homens e 94,1% mulheres) da população dos países membros da OCDE. No entanto, deve-se mencionar que essa média não é representativa de todos os países da região, pois países como Brasil, Chile, Trinidad e Tobago e Venezuela têm quase dois terços de sua população bancarizada.
Da mesma forma, neste último quinquênio 2017-2021, o processo de bancarização tem se revigorado na região e, inclusive em decorrência da pandemia de COVID-19, ganhou mais força, especialmente naqueles países onde os governos, graças a um registro previdenciário sólido e maior conectividade, têm conseguido conceder subsídios à população, bem como programas de transferência monetária por meio de carteiras digitais. Como exemplo, de acordo com o programa estadual da Banca de las Oportunidades da Colômbia, Nos primeiros nove meses de 2020, 2,2 milhões de novos adultos acessaram os serviços do sistema financeiro do país pela primeira vez.
Embora esse processo de inclusão financeira seja positivo, evidências mostram que, para garantir o bem-estar financeiro das pessoas, não basta ter acesso a uma conta ou a outros produtos e serviços bancários, mas uma educação financeira que lhes permita fazer bom uso deles. Ou seja, como indica a OCDE, uma educação financeira que forneça ferramentas a consumidoras e consumidores para melhorar sua compreensão de produtos, serviços, conceitos e riscos, bem como desenvolver as habilidades e a confiança para estar mais conscientes, tanto dos riscos quanto das oportunidades financeiras, e tomar decisões informadas, para melhorar seus bem estar econômico e social.
Sem educação financeira e as ferramentas certas, existe um risco latente de que esse processo de bancarização acelerado não tenha o impacto desejado, e que as desigualdades sociais e de gênero entre e dentro dos países se aprofundem.
Perante essa situação, é urgente perguntar não só se a população da região, até 2021, dispõe de conhecimentos, competências e atitudes para fazer bom uso de suas finanças, mas também se todas as pessoas largam da mesma linha de partida em relação ao nível de educação financeira e ao uso de novas tecnologias digitais.
Para responder a essas perguntas, nas últimas décadas, foram realizados diagnósticos, pesquisas qualitativas e quantitativas nos países da região, tanto em nacional como localmente, para identificar o nível de educação financeira.
Em especial, as pesquisas de medição de capacidade financeira do CAF –banco de desenvolvimento da América Latina– que, desde 2013, foram conduzidas em oito países da região, conseguiram incorporar alguns dos principais eixos estruturantes das desigualdades sociais e de gênero nos diagnósticos das capacidades financeiras da população. Essa integração permitiu tornar visível como faixa etária, gênero, território, nível educacional e nível socioeconômico e suas sobreposições podem condicionar significativamente o nível de educação financeira e o comportamento das pessoas no que diz respeito ao acesso e à gestão de suas finanças. Por exemplo, de acordo com a pesquisa da Colômbia de 2019, identificou-se que mulheres, residentes em áreas rurais, pessoas com baixos níveis de formação acadêmica, pessoas com mais de 40 anos e desempregadas ou inativas são os grupos que sofrem queda do bem-estar financeiro, o que reduz sua capacidade de cumprir integralmente suas obrigações financeiras atuais, sua segurança financeira futura e, finalmente, sua capacidade de tomar decisões que lhe permitam aproveitar a vida. Além desses eixos, existem outras condições relacionadas a pertencimento étnico, status migratório, identidade de gênero e status de deficiência que podem influenciar fortemente as oportunidades financeiras das pessoas.
Além disso, os resultados das últimas pesquisas de capacidades financeiras do CAF, realizadas especialmente a partir de uma perspectiva de gênero e desenvolvidas na Colômbia e no Peru, em 2019, e no Brasil e no Equador, em 2020, tornam visíveis as lacunas de gênero em desvantagem das mulheres em questões de resiliência, vulnerabilidade, conhecimento e comportamento financeiro, bem como no acesso e uso de serviços financeiros digitais. De acordo com inúmeros estudos e investigações, essas lacunas financeiras são o resultado de normas e papéis sociais e culturais que limitaram as oportunidades e direitos das mulheres de ter poder, acesso e controle sobre ativos financeiros (e não financeiros), com um impacto substancial sobre sua autonomia econômica.
Essas descobertas mostram claramente que programas de educação financeira concebidos e implementados com base em um único modelo de comportamento financeiro ou perfil de usuário, geralmente masculino, beneficiam apenas alguns grupos populacionais, deixando outros para trás..
Diante desse desafio, um número crescente de entidades financeiras, como Bancamía, na Colômbia, Pro Mujer na Bolívia, Financiera Confianza, no Peru, entre outras, tem adaptado programas de educação financeira às necessidades das mulheres, por meio de uma análise, não só seu perfil financeiro, mas também seu perfil socioeconômico, uma vez que este último tem uma influência significativa no bem-estar financeiro.
O CAF, em seu papel de Banco de Desenvolvimento da região, se juntou aos esforços que os países estão realizando para que a alfabetização financeira beneficie toda a população, sem deixar ninguém para trás. Especificamente, durante o ano de 2021, por meio de um trabalho conjunto entre as Vice-Presidências do Setor Privado e Desenvolvimento Sustentável, foi implementada uma série de oficinas de educação financeira com foco na economia comportamental e com perspectiva para entidades como a Associação Bancária e de Entidades Financeiras (Asobancaria) da Colômbia, a Corporação Nacional de Finanças Populares e Solidárias (CONAFIPS), a Superintendência da Economia Popular e Solidária (SEPS) e a Superintendência de Bancos do Equador, bem como o Banco de Desenvolvimento Produtivo (BDP) da Bolívia
Essas oficinas permitiram aos dirigentes dessas instituições refletir sobre os conceitos de gênero e economia comportamental, em relação a seu trabalho e contextos sociais, bem como conhecer as ferramentas e boas práticas de entidades que fizeram progresso na integração dessas abordagens em seus programas de educação financeira em resposta às diversas necessidades financeiras e não financeiras de seus clientes.
Finalmente, as desigualdades que persistem na sociedade da região afetam, inegavelmente, o bem-estar financeiro de sua população, razão pela qual é importante revisar os programas de educação financeira para que essas desigualdades estruturais e de gênero sejam visíveis, reconhecidas e abordadas, e medidas específicas e ações sejam incluídas. Caminhar nessa direção permitirá que as entidades elaborem programas que se tornem veículos efetivos para o empoderamento das mulheres, bem como de outros de grupos populacionais excluídos, e, ao mesmo tempo, que os países cumpram os princípios da Agenda 2030 e contribuam para o alcance dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, como o ODS 1 sobre a Erradicação da Pobreza; o ODS 5 sobre a Igualdade de Gênero; o ODS 8 sobre o Trabalho Decente e Crescimento Econômico; e o ODS 10 sobre a Redução das Desigualdades.