Desigualdade, liberdade e desenvolvimento
É inerente à nossa natureza obter satisfação não apenas do próprio bem-estar, mas da maneira como nos vemos em relação aos outros: mensagens indicando que estamos mais atrasados na quitação do serviço de energia do que nossos vizinhos nos induzem a antecipar os pagamentos e informações sobre nossa posição na distribuição de renda alteram nossa opinião sobre impostos redistributivos. Quando o objeto de desejo de uma criança é o que seu irmão mais novo está segurando em suas mãos, vemos a expressão instintiva de que percebemos nosso bem-estar não apenas a partir de nossas próprias sensações, mas também em comparação com algum grupo de referência socialmente próximo ou distante. É natural que a amplitude das brechas sociais tenha consequências na forma como as pessoas percebem seu próprio bem-estar e, portanto, em suas decisões sobre ofertas de trabalho ou participação política.
Do início dos anos 90 até o início dos anos 2000, a desigualdade na América Latina aumentou. Em seguida, passou a cair, até por volta de 2013, e tem se mantido mais ou menos estável desde então (Lustig, 2020a). Apesar dessas flutuações, a região continua liderando os rankings de desigualdade globais. Quando se tem em conta que as pesquisas de domicílios, fonte comum de estudos sobre desigualdade, não costumam incluir pessoas com renda muito alta, muito menos pessoas com considerável renda não laboral (Lustig, 2020b), e procura-se corrigir o cálculo para incluí-los, os níveis de desigualdade mostram-se ainda mais elevados: o 1% mais rico da população recebe cerca de 25% da renda nacional total de nossa região.
Assim como no caso de percepções de insegurança, em que o que importa não é o nível de criminalidade, mas a mudança no nível de criminalidade (um homicídio em uma comunidade que, há muito tempo, não vivencia tal evento causará muito mais agitação do que dois homicídios em outra comunidade onde esse tipo de ocorrência é normal). É possível que a visível insatisfação com as lacunas entre ricos e pobres, que desencadeou os protestos sociais recentemente observados em países como Colômbia e Chile, esteja ligada à estagnação da desigualdade, após um período de melhora, e não à desigualdade em si. Desigualdade alta e persistente é quase sinônimo de desigualdade de oportunidades e a estagnação da redução da desigualdade, observada a partir de 2013, pode ter gerado frustração entre os cidadãos que viram suas chances de progresso melhorarem durante a primeira década dos anos 2000. Isso ressalta a importância da agenda de inclusão não só para a estabilidade da região, mas para suas possibilidades de desenvolvimento de longo prazo.
O desenvolvimento de instituições confiáveis que facilitem a tomada de decisões coletivas e a resolução de conflitos, ao mesmo tempo que deixam espaço para a criatividade e a iniciativa individual, requer um delicado equilíbrio entre o poder do Estado e o poder da sociedade: por um lado, o Estado deve ser suficientemente forte para fazer cumprir as regras e definir mecanismos decisórios confiáveis e estáveis que afetem o coletivo; por outro lado, esse Estado não deve oprimir os cidadãos a ponto de sufocar a inventividade e o empreendedorismo. Se fôssemos representar graficamente o poder do Estado contra o poder dos cidadãos, uma linha de 45 graus descreveria a igualdade de poder entre os dois. Então, foi sugerido (Acemoglu e Robinson, 2020) que o caminho para a prosperidade e a liberdade é espaço, não muito amplo, em torno dessa linha de igualdade, em que um estado mais complexo e poderoso é contrabalançado por uma sociedade melhor organizada e empoderada. Desequilíbrios extremos levam à autocracia por um lado ou à desordem total por outro
O poder do Estado é, em muitos casos, um eufemismo para o poder de uma elite, de modo que a qualidade das instituições resultantes da tensão entre o Estado e os cidadãos está intimamente relacionada aos mecanismos de distribuição de renda e riqueza entre as elites e o resto. Uma cidadania excluída e frustrada pela impossibilidade de progresso não pode contribuir com toda a sua capacidade e inventividade para o processo criativo da sociedade. E, em um sentido amplo, não desfruta, realmente, de uma vida livre (Sen, 1999). Ao mesmo tempo, as elites são necessárias para viabilizar a tomada de decisões coletivas.
Nos últimos meses, temos visto um esforço significativo do governo dos Estados Unidos para promover uma agenda de políticas e investimentos públicos voltados para a redução da desigualdade. Aumentos de impostos e maior provisão pública de seguridade social aumentam o tamanho do Estado, mas de uma forma que busca melhor empoderar os cidadãos, dando-lhes maiores capacidades de desenvolvimento e participação plena. De tal forma que a aposta é que o aumento do “poder” do Estado seja mais do que compensado pelo maior poder dos cidadãos.
Mas o diabo mora nos detalhes. A reforma tributária proposta e rejeitada na Colômbia há alguns meses tinha vocação inclusiva, com aumentos tributários geralmente progressivos destinados a manter maiores gastos sociais. No entanto, protestos violentos continuaram por muito tempo depois que o projeto foi retirado. A intenção do governo se viu diante de um campo político minado de impossibilidades. No Peru, as feridas da desigualdade e da segregação históricas foram vistas mais uma vez no ciclo eleitoral passado e, cientes dos riscos de radicalização, esperamos que o novo governo consiga mover a balança para percorrer um caminho de inclusão, sustentabilidade e liberdade.