Espírito Santo e sua tentativa de aproveitar o atual boom do preço do petróleo
Artigo de Oswaldo López e Edgar Salinas.
A atual recuperação econômica global trouxe consigo um novo boom de preços do petróleo, que, tendo o Brent como benchmark, já acumulam alta de mais de 45%, em 2021. Para as economias exportadoras de petróleo, esses aumentos de preços sempre geraram importantes dilemas políticos para seus governos, que ficam divididos entre usar esses fluxos extraordinários para atender às necessidades imediatas da população ou, ao contrário, poupá-los para que estejam disponíveis para as próximas gerações. A conveniência de injetar esses recursos na economia, via investimento público, ou enviá-los para um mecanismo anticíclico que reduza a volatilidade dos exercícios orçamentários também é frequentemente discutida.
No Brasil, essas discussões chegam a níveis de governo subnacionais, levando em conta que essas entidades recebem cerca de 60% da tributação exercida sobre o setor petrolífero. Nesse grupo está o Espírito Santo, terceiro estado produtor de petróleo do país, com produção próxima a 250 mil barris por dia. A situação petrolífera do Espírito Santo tem grande impacto em suas finanças públicas. O estado vem recebendo, em média, USD 504 milhões anuais em royalties e participações especiais de petróleo (perto de 40% de suas transferências correntes atuais) durante a última década.
Embora a falta de recursos constitua uma limitação para o desenvolvimento de muitos entes subnacionais, a entrada abrupta e massiva de renda, como ocorre com as receitas do petróleo, paradoxalmente também pode levar ao fracasso da gestão pública, dados os problemas que gera sobre o planejamento orçamentário ou incentivos à falta de accountability e corrupção. Evidências encontradas para governos municipais no Peru, Colômbia, Argentina e no próprio Brasil sugerem que a disponibilidade de um maior volume de recursos, nesses casos oriundos de uma commodity, gera maiores gastos públicos, porém, não fica claro se esse aumento de gastos oferece melhorias nos indicadores de gestão dos governos, aumento da qualidade dos bens públicos fornecidos ou maior transparência na prestação de contas públicas.
Especificamente, as receitas petrolíferas do governo do Espírito Santo têm apresentado comportamento oscilante (de acordo com os preços internacionais do petróleo bruto) e declinante (devido à queda na produção) nos últimos anos. Para lidar com essas oscilações de renda, o governo estadual optou por seguir a antiga recomendação da parábola Bíblica de José de estocar bens durante os anos de fartura para usá-los no tempo de escassez. Foi assim que surgiu o Fundo Soberano do Estado do Espírito Santo (Funses), uma iniciativa do Executivo estadual criada em junho de 2019 e regulamentada em novembro de 2020.
Pelo menos 40% dos royalties e 15% dos repasses de participações especiais de petróleo recebidos pelo Espírito Santo são repassados ao Funses, que representa sua principal fonte de receita. Essas taxas poderiam ser reduzidas pela metade, caso o Estado entrasse em situação de risco de liquidez, o que seria representado por uma queda real no saldo de disponibilidade de caixa em relação ao ano anterior.
O fundo foi projetado com o duplo propósito de: 1) servir como ferramenta de poupança intergeracional e 2) promover o desenvolvimento econômico sustentável na entidade. Entre 2019 e 2022, o peso da componente de poupança será muito relevante no Funses, concentrando 40% do total de recursos recebidos. Ao longo dos anos, espera-se que esse percentual seja reduzido até atingir 20%, a partir de 2027.
Para cumprir esse duplo propósito, o Funses conta com o BANESTES, banco misto do estado do Espírito Santo, responsável pela gestão do fundo de poupança geracional, sob a premissa de realizar investimentos de forma conservadora e buscando manter a rentabilidade acima da taxa básica de juros SELIC. Por sua vez, o BANDES (Banco de Desenvolvimento do Estado do Espírito Santo) será o agente financeiro encarregado de promover o desenvolvimento econômico sustentável, por meio de um esquema inovador de participações societárias em empresas privadas (Private Equity e Venture Capital), além de outras tipos de investimentos estruturados, regulamentados pela Comissão de Valores Mobiliários. Para a atividade de desenvolvimento de negócios, as empresas devem ter domicílio fiscal no estado.
Embora o governo do Espírito Santo pudesse resgatar recursos acumulados no Funses, principalmente para mitigar riscos fiscais, só poderia fazê-lo por um valor equivalente ao rendimento gerado no ano anterior e quando o saldo do fundo ultrapassasse BRL 1 bilhão (USD 178 milhões) Ao fim de 2021, o Funses tinha uma capitalização de BRL 628 milhões (USD 112 milhões), com projeção de atingir BRL 2 bilhões (USD 357 milhões) em 2022.
Embora discussões sobre o uso racional das receitas tributárias do petróleo sejam antigas no Brasil, o interesse dos gestores dos governos subnacionais em abordar essa questão é relativamente recente. Junto com o Funses, outros fundos de poupança já estão operando em nível municipal, como o Fundo de Nivelação de Renda do município de Niterói-RJ (2019), o Fundo Soberano de Maricá-RJ (2017) e o projeto avançado do Fundo Soberano da Prefeitura de Ilhabela, em São Paulo. No total, os recursos administrados por esses fundos somam cerca de BRL 1,3 bilhão (USD 236 milhões).
Dessa forma, entidades locais e regionais brasileiras estão conduzindo uma discussão de economia política geralmente reservada aos governos nacionais. Em escala global, são poucas as experiências que podem ser contadas sobre os fundos soberanos subnacionais (nove nos EUA, três no Canadá e uma na Austrália), destacando-se o Fundo Permanente do Alasca, pela magnitude dos recursos administrados (USD 70 bilhões). Na maioria dos casos, predomina o modelo de dotação (endowments), em que os rendimentos gerados pelo fundo são utilizados para financiar gastos públicos prioritários, semelhante ao modelo utilizado por Funses.
No caso de Funses, o desafio é maior, não só pela constituição de um fundo soberano de poupança intergeracional, mas também pela criação da agência de investimento de capital de risco, que já contaria com BRL 250 milhões (US$ 44 milhões) para adquirir, de forma minoria, ações de empresas capixabas inovadoras. Embora este esquema de investimento seja amplamente utilizado pelos fundos soberanos de países asiáticos e do Oriente Médio, seria um modelo inédito para os fundos existentes na América Latina e Caribe.
No entanto, um diferencial dessa agência de investimentos de Funses em relação à corrente internacional é seu viés de investir em empresas localizadas no mesmo estado do Espírito Santo, o que envolve importantes desafios. A intenção legítima de promover a economia local pode ser ameaçada por más decisões de investimento. Nesse aspecto, é necessário estabelecer salvaguardas que limitem a má gestão de recursos e a corrupção, como a implementação de regulamentações, endossadas pelo poder legislativo local, que evitem conflitos de interesse em investimentos acionários.
Em geral, a experiência internacional indica que fundos soberanos bem-sucedidos são aqueles estabelecidos em ambientes institucionais sólidos e com um conjunto de políticas fiscais ordenadas. Um quadro adequado de regras fiscais poderia contribuir para o propósito do fundo de “estacionar” uma parte das receitas voláteis do petróleo, até que possam ser usadas de forma mais eficiente. Da mesma forma, as regras fiscais poderiam evitar a ocorrência de distorções, como a potencial falta de coordenação dos orçamentos paralelos (do estado e do fundo soberano) ou o enfraquecimento da responsabilidade pública.
A constituição de fundos soberanos pelos governos subnacionais no Brasil representa um importante passo na mudança de paradigma para uma política fiscal com visão de longo prazo. A utilização das receitas do petróleo em um esquema de poupança intergeracional e em uma agência de investimento produtivo do Funses é um exemplo disso. Portanto, vale acompanhar a evolução desse fundo nos próximos anos, tendo o CAF-banco de desenvolvimento da América Latina- não apenas como aliado institucional do estado do Espírito Santo, por meio dos vínculos gerados na operação de crédito para o “Complexo de Saúde Norte”, mas também como caixa de ressonância dessa experiência para outras entidades subnacionais em toda a região da América Latina.
Os autores agradecem os comentários e contribuições recebidos de Alexandre Viana Gebara, subgerente de Gestão do Fundo Soberano do Espírito Santo.