O bom burocrata e a motivação pelo serviço social
Os dois primeiros requisitos parecem inquestionáveis. A idoneidade do burocrata, ou seja, a correspondência entre as qualificações de um funcionário público e suas tarefas, é essencial para a prestação de serviços públicos de qualidade. O mesmo vale com a honestidade. A impunidade, a aceitação de comportamentos desonestos e a ausência de mecanismos de controlo interno são um coquetel que pode facilmente levar funcionários desonestos à corrupção, afetando o desenvolvimento.
Mas contar com burocratas capazes e honestos poderia não ser suficiente. Este artigo propõe que um terceiro requisito para um bom burocrata é a motivação, especificamente a motivação pelo serviço público. As pessoas fazem o seu trabalho por dois tipos de motivação: motivações extrínsecas ligadas à compensação, monetária ou não; e motivações intrínsecas, originadas no prazer, interesse ou senso de propósito que surge de uma atividade particular.
Segundo vários estudos, as pessoas com alta motivação pelo serviço público têm uma orientação altruísta mais forte e um maior interesse pelo serviço social, e isso se traduz em um melhor desempenho nas organizações públicas. Além disso, quando essas motivações existem, têm implicações importantes para a seleção, remuneração e retenção de recursos humanos nas organizações públicas.
Os funcionários públicos têm maior motivação pelo serviço público que os empregados do setor privado?
Duas perguntas da Pesquisa Mundial de Valores ajudam a elucidar essa incógnita. Na pesquisa se perguntou o quanto o entrevistado concorda com as seguintes afirmações: "É importante fazer as coisas pelo bem da sociedade" (medida de motivações para o social) e "É importante ajudar as pessoas mais próximas e se preocupar por seu bem-estar" (medida de altruísmo).
Para analisar se os funcionários públicos se diferenciam dos privados por ter mais motivações em relação ao serviço público, é possível comparar a média das respostas segundo o setor de emprego, separando o efeito que possam ter outras características sobre as motivações (por exemplo, o nível de educação, a idade, o sexo, etc.). A análise ocorreu em oito países da América Latina -Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, México, Peru e Uruguai- incluídos na última etapa da pesquisa, realizada entre 2010 e 2012.
Resultado: na região latino-americana como um todo, os funcionários públicos parecem ter uma maior motivação para o social do que seus pares no setor privado. A diferença na métrica de altruísmo também é positiva, embora não seja estatisticamente significativa. No caso da Colômbia, os trabalhadores públicos parecem ter maior motivação para o social e maior altruísmo com relação aos do setor privado e, em ambos os casos, essas diferenças são estatisticamente relevantes.
Em contraste, nos países de alta renda, tanto da OCDE como os que não fazem parte desse grupo, a diferença nas motivações intrínsecas entre os trabalhadores do setor público e do setor privado, após levar em conta outras características dos empregados, é muito mais marcada que na região como um todo. A América Latina parece ter muito para melhorar em termos de atração e retenção de trabalhadores com motivações mais elevadas em relação ao social e altruísmo.
a / O gráfico mostra as diferenças das médias condicionadas e dos intervalos de confiança a e 95% calculados por mínimos quadrados ordinários em duas medidas de motivações com relação ao serviço público entre empregados públicos e privados. Controlaram-se por sexo, idade e nível de escolaridade. As duas medidas de motivação utilizadas variam entre 1 e 6, onde um valor mais alto do indicador está associado com uma motivação mais alta.
b / O conjunto de países de alta renda da OCDE é composto por Austrália, Alemanha, Japão, Coreia do Sul, Holanda, Nova Zelândia, Polônia, Eslovênia, Espanha, Suécia e Estados Unidos. No conjunto de países de alta renda que não são da OCDE estão Bahrein, Chipre, Estônia, Kuwait, Catar, Cingapura e Trinidad e Tobago. No conjunto de países de baixa renda estão Gana, Quirguistão, Ruanda e Zimbabwe. Por último o conjunto da América Latina e do Caribe é formado por Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, México, Peru e Uruguai.
Fonte: elaboração própria com dados do World Values Survey - 6ª etapa (2010-2014).
No Relatório de Economia e Desenvolvimento 2015 (RED), elaborado pelo CAF -Banco de Desenvolvimento da América Latina- encontra-se evidência de que as motivações intrínsecas são um determinante importante do esforço e da conduta ética dos trabalhadores, particularmente no setor público. Daí a importância de usa-las para identificar e selecionar os trabalhadores adequados para o serviço público, sem abandonar disposições institucionais que incentivem o esforço ou condicionem práticas desonestas de maneira mais geral.